Da floresta Amazônica aos laboratórios: Dinâmicas sociotécnicas na legitimação e deslegitimação da ayahuasca entre as décadas de 1960 a 2010
O objeto da tese é a análise das dinâmicas sociotécnicas na legitimação e deslegitimação da ayahuasca na sociedade brasileira, das décadas 1960 a 2010. A ayahuasca é uma beberagem utilizada milenarmente por indígenas da região Amazônica e esses usos foram retomados por alguns desses povos nas décadas recentes. Em decorrência do Ciclo da Borracha, ao longo do século XX, as religiões ayahuasqueiras foram fundadas na região, institucionalizaram-se e se expandiram para outras regiões e países, atraindo inclusive o interesse de celebridades da TV e da música. Mas a implementação de políticas de “drogas” nas décadas de 1960/1970 trouxe a “repressão” aos usos religiosos da beberagem e promoveu a abordagem sensacionalista de determinados veículos de imprensa. Mesmo assim, em 2010, o governo brasileiro regulamentou o “uso religioso da ayahuasca”, década em que também cresceu o número de pesquisas sobre seus usos terapêuticos na neurociência e na psiquiatria e, desde então, os veículos de imprensa passaram a divulgar os resultados de tais pesquisas. Contudo, há uma lacuna na literatura científica sobre as relações e conflitos entre diferentes pessoas e instituições nos processos sociais e técnicos na legitimação e deslegitimação da beberagem na sociedade brasileira. Essa é, portanto, a principal questão que fundamenta a presente pesquisa, delimitada para abranger as décadas entre 1960 e 2010. A partir dessa questão, a tese discute e dialoga com os referenciais teóricos de Bruno Latour (2012) e argumenta que atores como indígenas, religiosos, jornalistas, veículos de imprensa, agentes públicos e pesquisadores, entre outros, constituem uma rede sociotécnica da ayahuasca. Considera desse modo as associações e controvérsias entre eles em torno da beberagem, propondo como hipótese que é dessas relações e conflitos que se configura sua maior ou menor aceitação e legitimidade. Com Carlo Ginzburg (1998; 1999) argumenta-se que por suas singularidades determinados atores se destacam nessa rede. Jacques Revel (1998a; 1998b) contribui com a abordagem do jogo de escalas apontando como as ações locais desses atores repercutiram na história global da ayahuasca. Nesse sentido, o objetivo é rastrear atores, suas cosmovisões e interesses, bem como as associações e controvérsias entre eles na legitimação e deslegitimação da ayahuasca na sociedade brasileira, das décadas de 1960 a 2010. Para isso, primeiro, foi realizada uma etnografia em 128 reportagens, em 24 normativas legais e sanitárias, em 2 artigos científicos e em outros documentos para mapear quem são esses atores e quais são suas ações na legitimação e deslegitimação da ayahuasca. E na sequência, foram feitas 14 entrevistas com alguns desses atores para aprofundar os dados da etnografia. Considerando também minha experiência como praticante da ayahuasca, analisa-se a institucionalização da religião União do Vegetal, a popularização da religião Santo Daime, de celebridades e indígenas Yawanawá no noticiário, a cientificização da beberagem em pesquisas do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e pela imprensa e a regulamentação de seu “uso religioso” no Brasil. Conclui-se que a ayahuasca se tornou mais legitimada social, legal e cientificamente no decorrer das seis décadas recentes, embora as controvérsias ainda existam.