Derramamento de petróleo na costa brasileira em 2019: uma abordagem multidisciplinar sobre os impactos moleculares, enzimáticos, ontogênicos e celulares em modelos biológicos
Em agosto de 2019, a costa brasileira enfrentou um dos maiores acidentes de derramamento de petróleo do mundo, afetando cerca de 3000 km de litoral rico em biodiversidade e habitats costeiros diversos. Esse evento teve impactos ambientais e socioeconômicos severos, incluindo a contaminação da fauna, o comprometimento da pesca local e a exposição direta de comunidades costeiras ao petróleo. O petróleo derramado formou sólidos que afundaram na coluna d’água, protegendo esses compostos de agentes naturais de degradação, como luz solar e vento e formando a Fração Acomodada em Água (WAF, Water Accommodated Fraction). Tendo em vista os prejuízos ambientes e na saúde única, este trabalho teve como objetivo obter a composição de hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPAs) da WAF obtida da amostra de solo-petróleo derramado na praia de Penedo (Alagoas, Brasil), bem como compreender as alterações causadas pela exposição à WAF em modelos representativos dos organismos expostos. Os resultados revelaram que a composição química da WAF em diferentes meios (água marinha artificial, meio E3, usado para manutenção e desenvolvimento de larvas de zebrafish e água destilada), identificou 15 dos 16 HPAs considerados como contaminantes prioritários pela Agência de Proteção Ambiental Americana sendo os antracenos e fenantrenos as frações mais concentradas. Para avaliar os impactos dessa exposição, foram utilizados modelos biológicos representativos das espécies afetadas pelo derrame. Duas espécies do gênero Artemia foram expostas à WAF em três concentrações de 100%, 4% e 0,16% para avaliar alterações bioquímicas e expressão de Heat-Shock Proteins (HSPs), bem como parâmetros de desenvolvimento ontológico do animal. Por outro lado, Danio rerio foi utilizado para investigar alterações na atividade enzimática e expressão gênica em embriões, além de avaliação ontogênica e expostos a concentrações de 100%, 50%, 25%, 12,5% e 6.25%. A WAF não foi capaz de induzir mortalidade ou alteração de eclosão significativa em A. spp. em qualquer concentração, enquanto D. rerio apresentou mortalidade significativa apenas a partir de 96 horas pós exposição nas concentrações 50% e 100%, com alterações no comprimento do corpo, saco vitelínico e edemas pericárdicos. Em ambos os modelos biológicos, observou-se aumento significativo nas atividades das enzimas catalase (CAT), glutationa-S-transferases (GSTs) e glutationa peroxidases (GPx), enquanto a atividade colinesterásica aumentou em Artemia parthenogenetica e reduziu em D. rerio. A expressão gênica de Cyp1A e Ahr1, genes relacionados ao metabolismo de HPAs, revelou aumentos na expressão de Ahr1, enquanto Cyp1A não apresentou diferenças entre os grupos quando avaliados em D. rerio. A expressão de genes Dnmt2, P26, Hsp26, Hsp40, Hsp70 e Hsp90 em A. franciscana indicou alterações significativas de todos os genes avaliados. Em modelos celulares humanos, hepatócitos HEPG2 e fibroblastos FGH foram utilizados para avaliar os efeitos citotóxicos da WAF por meio do ensaio de MTT, que revelou diminuição na viabilidade celular em ambas as linhagens expostas a WAF em concentrações de 100%, 50%, 25%, 12,5% e 6,25%. Além disso, microrganismos representativos da microbiota humana e de importância médica em termos de saúde pública, como Serratia marcescens, Staphylococcus epidermidis e Candida tropicalis, foram expostos à WAF em concentrações de 100%, 4% e 0,16%, com aumento significativo do crescimento observado em S. marcescens e nenhuma alteração nos demais microrganismos. Conclui-se que os fragmentos sólidos contendo petróleo são fontes contínuas de HPAs no ambiente, com potencial para comprometer a saúde da fauna aquática e humana expostas, ressaltando a necessidade de novas estratégias de monitoramento contínuo e mitigação para proteger os ecossistemas costeiros e as populações humanas afetadas.