Nuquin Papa iquec (Deus existe): um estudo da cristianização dos matses a partir da tradução bíblica do Summer Institute of Linguistics (SIL)
Na selva amazônica, uma jovem Matses narra a visita de dois espíritos que vêm lhe sugerir abandonar sua recente crença em Nuquin Papa (‘Nosso Pai’), o Deus cristão. Apesar dos argumentos e da presença intimidadora destes visitantes, a jovem reafirma sua decisão de seguir a Nuquin Papa e sua confiança na Nuquin Papan Chiaid (‘O que Nosso Pai falou’), a Bíblia traduzida ao idioma matses. A visão, na verdade, prefigura o encontro das cosmologias: a nativa e a cristã. Reflete também o impacto da evangelização com que os Matses foram abordados desde o contato em 1969 por missionárias-linguistas do Summer Institute of Linguistics (SIL) e expõe como a terminologia cristã que o SIL desenvolveu e empregou na tradução bíblica passou a ressignificar seres, pessoas, relações e sentidos da cosmologia tradicional. Contudo, estas ressignificações não procederam apenas de uma das partes envolvidas. Se por um lado, a evangelização e a tradução bíblica foram previamente pensadas pelas missionárias ao cunharam toda uma terminologia pretensamente reformuladora, os indígenas, por sua vez, também encontraram seus próprios sentidos na religião do outro. A relação de “interpenetração de civilizações”, que tanto aparece na produção antropológica e que reposiciona o indígena como sujeito de sua história e não apenas produto colonial, é retomada neste trabalho como forma de pensar as peculiaridades do que tem sido chamado de cristianismo “genuinamente indígena”. Nesta perspectiva, a pesquisa tratou de abordar o modus operandi das missionárias-linguistas do SIL no processo criativo da terminologia cristã no idioma nativo, mas sem invisibilizar o processo de tradução cultural com que paralelamente os Matses fizeram a “leitura da alteridade”, repensando o cristianismo, a missão e a Bíblia em seus próprios termos, sem necessariamente implicar rupturas com a cosmologia nativa.