«NÃO EXISTE MULHER BANDIDA»: Um estudo das relações de gênero nas prisões paulistas
Entendemos a prisão como uma instituição estreitamente relacionada ao modo capitalista de produção e reprodução da vida. Desta feita, estudamos a prisão e as dinâmicas e relações de poder que a perpassam com o objetivo de, para além de apreender e analisar tais relações, entender como suas elas explicam e são explicadas pela atual conformação da ordem sociometabólica do capital. Neste sentido, fundamentadas por discussões desenvolvidas por teóricas da reprodução social, da Teoria da Reprodução Social, dos feminismos negros e decoloniais, neste trabalho buscamos compreender como as relações de gênero, coconstituídas pelas relações de raça, classe e sexualidades, perpassam e conformam as dinâmicas das prisões do estado de São Paulo marcadas pela presença da organização de presos Primeiro Comando da Capital. Considerando as complexidades de fazer pesquisa em prisão, optamos pela coleta de dados e informações provenientes de diferentes fontes. Assim, realizamos entrevistas semiestruturadas com pessoas egressas e funcionárias de prisões paulistas; observação das dinâmicas e relações de poder presentes em instituições prisionais paulistanas; e análise documental de materiais produzidos pelo próprio PCC. A partir da análise desse material, identificamos representações de gênero que separamos em três eixos: representações que partem da ideia de que “não existe mulher bandida”; que entendem a mulher como demasiadamente emocional e histérica, em oposição a uma compreensão do masculino como racional e equilibrado; e que associam a masculinidade à honra, à virilidade, à força e ao “ser guerreiro”. Argumentamos que tais representações de gênero estão intimamente associadas às construções de gênero forjadas no alvorecer do capitalismo industrial e que norteiam a conformação da divisão sexual do trabalho no PCC, em que mulheres ocupam posições coadjuvantes e subalternas e homens, posições de protagonismo. Verificamos, ainda, que o controle que o PCC exerce sobre os corpos e a sexualidade das pessoas presas em cadeias masculinas é maior do que o exercido nas prisões femininas. Enquanto as relações homoafetivas são aceitas nestes espaços, nas prisões masculinas homens gays só são aceitos caso “se comportem”, não sendo “afeminados”, revelando os efeitos da construção das masculinidades sobre aqueles que não se submetem à normatividade heterossexual. São associados às mulheres, em termos de passividade e de penetração das fronteiras do corpo, e punidos com a perda de privilégios associados ao gênero masculino. Sobre a divisão sexual do trabalho nestes contextos, observamos uma forte conexão entre gênero e sexualidade em sua conformação, em que homens gays realizam trabalhos entendidos como femininos, como a lavagem de roupas e a limpeza de celas, e mulheres que se relacionam afetiva e sexualmente com outras mulheres realizam trabalhos associados ao masculino, como as atividades de manutenção. Embora vigore nas prisões uma ordem de gênero baseada em valores conservadores, baseados em uma dicotomização estrita entre masculino-homem/feminino-mulher e a divisão sexual do trabalho mais tradicional, devido à segmentação sexual das cadeias, a divisão sexual do trabalho se rearranja, de forma a borrar as fronteiras daquilo que se convencionou chamar “sexo”, a partir de denominações sexuais, orientações e identidades.